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Tal qual uma matrioshka (boneca russa), vamos desvendando nossas porções. A cada novo tempo, uma nova aprendizagem. Agora é o momento de nos vermos como seres holísticos que têm: corpo, organismo, cognição (intelecto), inconsciente (desejo) e mente (consciência, espírito).

ANGELINI, Rossana Maia (2011)

“A falsa ciência cria os ateus, a verdadeira, faz o homem prostrar-se diante da divindade.”

VOLTAIRE (1694 -1778)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Texto para Reflexão: Mediação de Conflitos – o diálogo como caminho


Atualmente, a palavra que mais ouvimos na mídia é conflito. Os conflitos estão por toda parte: na escola, na família, nas nações, nas relações humanas...Portanto, queremos propor uma reflexão, junto aos pais, aos professores e à sociedade, sobre a importância do diálogo como possível facilitador de relações conflituosas.
Compreendemos que a mediação de conflitos deve ser estendida à rede escolar de ensino. Nosso intuito é o de propiciar às crianças, aos adolescentes, a todos os envolvidos no universo escolar uma reflexão sobre seus comportamentos e atitudes nas relações que estabelecem, fundamentalmente hoje, quando o bullying está nas escolas causando dor e sofrimento a todos. Na mediação dos conflitos, buscamos o diálogo como caminho.

MEDIAÇÃO – aspectos relevantes:

- A mediação ocorre desde que o homem nasceu. Há sempre alguém na comunidade quem administra os conflitos.

-A mediação é feita por um terceiro e pode estabelecer uma transformação das partes, o que possibilita um acordo, ou não.

- A mediação empodera o outro – sua abordagem é transformativa, leva os mediados a verem sua competência; propicia o reconhecimento do outro, o que legitima cada um dos envolvidos.

- A mediação tem como objetivo tornar as pessoas competentes para o diálogo, por meio da co-responsabilidade, da co-construção, para que os mediados saibam sair do conflito.

- A mediação surge como uma mudança de paradigma, implica na interação; no diálogo; na conversação; na multivisão; na cooperação.

- A mediação tem como proposta transformar as relações sociais por meio da interação.

- A cultura da mediação no Brasil vem a partir de 1997.

Apresentamos, a seguir, duas histórias (fictícias), em que os conflitos causam dor e sofrimento. Por meio da mediação, analisamos os casos e propusemos uma intervenção: o diálogo como caminho.

Filme: A História de Qiu Ju

Título original: Qiu Ju Guan Si
Diretor: Zhang Yimou
Origem: China – Hong Kong
Categoria: Drama
Ano: 1992
Ganhador do Leão de Ouro de Melhor Filme no Festival de Veneza – 1992.

         O filme tem início com o personagem Ginglai (marido de Qiu Ju –que está grávida) - é chutado nos testículos e costelas pelo chefe do povoado – Wang Shantang.
         Motivo do chute: Ginglai diz a Wang em uma discussão que ele só tinha filhas mulheres e que cuidava de galinhas. Qiu Ju inconformada com a atitude do chefe, leva seu marido ao médico que não detecta nada de grave. Qiu Ju permanece inconformada e quer justiça. Vai à cidade em busca do oficial Li – quem fará a mediação do caso. Qiu Ju apresenta o problema e o oficial decide que o acusado pague as despesas com o ocorrido.
         Qiu Ju diz que não quer dinheiro e insiste na retratação do agressor enquanto justiça para resolver o conflito e dar o caso por encerrado. O oficial – o mediador – quer “abafar” o caso, tentando convencer Qiu Ju a esquecer o incidente e a aceitar o dinheiro. O oficial quem toma a decisão para resolver logo o caso. Não satisfeita com a decisão do mediador, Qiu Ju insiste na retratação e leva o caso ao Diretor Yan – representante da Comarca – BSP – que faz uma nova mediação e por meio de sua decisão, Qiu Ju ganha mais uma quantia em dinheiro, o que novamente não a satisfaz. Qiu Ju quer justiça e a justiça para ela tem significado de retratação.
Qiu Ju insiste na retração e recorre a uma apelação junto ao tribunal, apesar de toda consideração e ajuda do Diretor. Seu representante será o advogado Wu. O caso vai para as instâncias superiores e o Diretor por quem Qiu Ju sentia admiração acaba sendo processado, Qiu Ju não queria que isso ocorresse, contudo fazia parte do processo.
         O caso vai para julgamento e Qiu Ju perde, portanto apela para o Tribunal Intermediário do Povo que fará novas averiguações, inclusive novos exames médicos, como raio x. Durante esse tempo, Qiu Ju começa o trabalho de parto, passa mal e chega quase à morte, mas Ginglai, marido de Qiu Ju, pede socorro ao Chefe do povoado – Wang – para ajudá-los, e com essa atitude Qiu Ju e seu filho são salvos. Qiu Ju passa a ser muito grata ao chefe do povoado, por sua atitude generosa. O tempo passa e tudo vai bem no povoado, com todos se preparando para a festa de um mês do bebê, inclusive Qiu Ju faz questão da presença do chefe do povoado. Reinava a paz na comunidade, até que exatamente no dia da festa, Wang que se preparava para ir ao evento, é surpreendido, autuado e levado pela polícia; pois nos exames que foram realizados em Ginglai, fora encontrada uma costela quebrada o que confirmava a agressão e denunciava o agressor e, portanto, sua prisão.
A história termina com a perplexidade de Qiu Ju que não queria a prisão do chefe. No filme, é realizada uma Mediação Tradicional, diferente da Mediação Transformativa proposta atualmente. Percebe-se que nesse tipo de mediação não há uma preocupação com os sentimentos dos envolvidos no conflito, não há um olhar ao humano, o que acirra o confronto. Não se observa uma vontade de resolver o problema por meio do diálogo e da reflexão dos envolvidos, o que os leva a endurecer suas atitudes, permeadas por raiva e rancor.
Nesse tipo de Mediação, observa-se que o mediador não exerce a função de facilitador do diálogo, o que possibilitaria que os envolvidos no conflito pudessem conversar sobre suas diferenças frente ao caso e identificar sua participação na construção do conflito. Não se observa em momento algum os “nós” envolvidos no conflito, parece tudo muito solitário e sofrido.
A Mediação Transformativa propõe o diálogo como caminho para a resolução do conflito e mesmo para que os envolvidos possam buscar um olhar de compreensão a eles mesmos frente ao problema. Esse tipo de Mediação está marcada pelo diálogo, o qual é possibilitado pelo mediador, guardião do processo. Por esse tipo de mediação, o que se busca é o diálogo reflexivo, transformador, para que todos os envolvidos no conflito possam repensar suas atitudes e se co-responsabilizarem pela construção de um processo saudável para a resolução do problema.
         Já no filme, a mediação realizada é a tradicional, o foco está no problema e o objetivo é que o mediador resolva o mais rápido possível o conflito. Nesse sentido, as pessoas são vistas como peças de um problema que requer ser resolvido com objetividade. Falta a reflexão dos envolvidos no conflito, o foco não está nas pessoas, como se vê. Essa forma de mediação gerou no filme desconforto e muita tristeza para os envolvidos no conflito que foram se ressentindo mais e mais, por meio de novas mágoas, geradas por uma forma inadequada de mediação, para que de fato as relações humanas pudessem ser humanizadoras.
         Segundo YASBEK (2006) “A Mediação transformativa vem se constituindo como fenômeno de mudança e amadurecimento da sociedade. Considerando-se como uma expressão da crença no poder transformador do conflito e nas formas de resolvê-los, tem gerado consequências positivas para a convivência social dos indivíduos que ao construírem diferentes possibilidades de soluções para seus conflitos, reconstroem suas relações e si mesmos. Mediação é um processo conversacional onde um profissional – mediador – auxilia as pessoas a encontrarem consensualmente soluções satisfatórias para seus impasses e conflitos, favorecendo a transformação da relação entre elas.”
         De acordo com a autora, essa é a abordagem transformativa da Mediação, por meio da força transformadora do diálogo e da reflexão, poderemos gerar, então, espaços humanizadores, para que nossas relações possam estar baseadas no respeito e, acima de tudo, na Ética, para que possamos viver com dignidade.


Filme: A Guerra dos Roses e a Mediação de Conflitos


Título original: The War of the Roses
Diretor: Danny De Vito
Origem: U.S.A.
Categoria: Comédia
Ano: 1989


         O filme A Guerra dos Roses é uma trama muito bem articulada sobre a vida conjugal de um casal – Oliver Rose (advogado bem sucedido) – interpretado por Michael Douglas e Bárbara Rose (dona de casa que se descobre no mundo do trabalho) – interpretada por Kathleen Turner. Depois de dezoito anos de casados, a relação perde o encanto.
A personagem que deseja o divórcio e luta com todas suas forças pela separação e pela casa - o objeto da disputa - é Bárbara. O auge da trama está na disputa pela casa, e por ela o casal irá lutar até a morte.
         Outro personagem importante para a trama é Gavin D’Amato (o advogado de Oliver) – interpretado por Danny De Vito, quem prestará seus serviços para o processo da separação. O filme é narrado pelo advogado de Oliver. Gavin D’Amato é o advogado de Oliver Rose e para compreendermos melhor a Teoria do Observador; A Teoria da Narrativa e A Mediação Transformativa, colocaremos esse personagem-narrador (o advogado) como caminho para nossa discussão sobre a Mediação de Conflitos dentro de uma abordagem transformativa.
         O filme tem início com Gavin D’Amato fazendo a narrativa a um jovem que o procura em seu escritório para realizar seu divórcio. Então, o advogado narra toda a história dos Rose, com todos seus pormenores, desde o primeiro encontro do casal, até a morte de ambos pela disputa da casa onde moravam.
         A narrativa serve para esse novo caso como recurso de mediação, cuja finalidade é a transformação da ação do sujeito que o procura. A narrativa do advogado possibilita a reflexão do sujeito em relação ao seu conflito e também a transformação do próprio profissional em relação à condução do caso. A narrativa, portanto, atuou de forma dialética onde ambos saíram transformados. O advogado pôde humanizar seu atendimento, dando ênfase às pessoas envolvidas no conflito e não à disputa. O foco passou a ser a relação.
         Ao final da narrativa, o advogado diz ser “tradicional” – palavra que restabeleceu a humanização de sua atuação enquanto advogado, ou seja, agora um advogado preocupado com as relações, levando o jovem, por meio de sua narrativa, a uma reflexão interna e não mais enfatizando a mera disputa de um objeto. O advogado só compreendeu todo o contexto da situação  dos Rose, depois que o caso chegou aos extremos, com a morte do casal.
         O filme A Guerra dos Roses põe em cena a complexidade das relações humanas e a rede de relações que envolvem as pessoas. Articulando o filme à Teoria do Observador, podemos avaliar o quanto é complexo “capturar” a realidade para compreendê-la e mediá-la, pois como aponta SUARES (1996):
                 a) el objeto a observar, “personas em interrelación”, es de por si complejo, y
                  b) el observador está complejizado por lãs próprias matrices, por la s propia creencias que há ido desarrollando a lo largo de su vida, y que em la mayoría de los casos no son concientes ni han sido cuestionadas, están “duramente programadas” y muchas de ellas han sido estabelecidas como subproducto de otros aprendizajes y constituyen el esquema referencial com el cual el observador se aproxima a realizar la observación.
                                      En realidad ya no deberíamos hablar de observador sino de observador-         constructor de la realidad, en el sentido de asignación de sentido.

Enquanto mediadores – dentro de uma abordagem transformativa, precisamos buscar construir recursos para o distanciamento, para que não haja um envolvimento pessoal por parte do mediador, visto que mediar é um processo de relação dialógica. O observador deverá estar sempre em processo de relação dialógica.
A proposta do processo dialógico é levar os envolvidos na relação, por meio de perguntas, a uma reflexão. Uma forma de humanizarmos a relação, é possibilitar igualmente às pessoas  perguntas que as farão refletir e se ouvirem. O foco dessa abordagem está no processo e não no resultado. O que é emergente na história dos Roses é a urgência da transformação de ambos para que se resgate o diálogo, o que não foi propiciado pelo advogado que contribuiu ainda mais para o acirramento da disputa, ao descobrir na lei prerrogativas para favorecer um dos envolvidos no conflito.
Na verdade, a maneira como as pessoas (o casal e o advogado) procuraram resolver o problema foi o que constituiu o problema, impossibilitadas de uma mediação que pudesse gerar, a partir delas mesmas, situações alternativas que lhes permitissem sair do ciclo vicioso. Para que a transformação da relação ocorresse, poderíamos enquanto mediadores, usar como recurso a Teoria da Narrativa, a partir do levantamento das histórias dos personagens, a fim de que pudessem pensar e reavaliar o passado e o presente.
Dessa forma, as perguntas reflexivas abririam caminhos para uma possibilidade de diálogo, de se re-historiar. Nesse sentido, o mediador exerceria a função de facilitador do diálogo, aquele que possibilita a conversa e a redefinição do conflito, a partir dos próprios envolvidos no processo.
Penso que no filme A Guerra dos Roses houve um abandono ao humano por parte do advogado, resultando numa preocupação única com os bens a serem disputados. Houve uma valorização na disputa, em privilegiar uma das partes apenas e daí emergiu a falta de diálogo como causa e toda uma complexidade de emoções: raiva; ódio; ressentimento; egoísmo; etc.
         Assim, vale ressaltar as idéias de SLUZKI (1997):
Como em qualquer outro sistema – por exemplo, uma família considerada como tal -, as histórias que as pessoas contam não operam isoladas de seu entorno: existe uma imensa ecologia de histórias que vai desde as relações entre as histórias contadas pelos pacientes e todas as outras histórias da experiência pessoal e familiar não contadas, até as histórias compartilhadas por cada membro da família com seus próprios amigos, conhecidos e companheiros, até as histórias que constituem o patrimônio da cultura e subcultura dessas pessoas. (....) Portanto, o sistema “história” requer uma visão multidimensional e macroecológica: em cada nível de análise que escolhemos poderemos definir uma constelação de histórias afetando, e sendo afetadas por sub-histórias, supra-histórias, histórias vizinhas, e também histórias sem relação aparente com a escolhida.

Nesse caso, a Mediação como prática formalizadora e extrajudicial de solução de conflitos teria sido uma alternativa para que o casal pudesse buscar soluções construtivas e criativas geradas em um contexto de diálogo e reflexão. A abordagem transformativa da Mediação, por meio da força transformadora do diálogo e da reflexão, aplicar-se-ia muito bem nesse caso.
         Dessa forma, vejo na Mediação a capacidade do indivíduo de criar e gerar espaços sociais onde o diálogo é o instrumento que pode substituir a “selvageria” e possibilitar um amadurecimento para o convívio social. Enquanto mediadores, o filme A Guerra dos Roses instiga-nos a uma Mediação Transformativa, para que possamos ser agentes de transformação das relações humanas. Nesse sentido, se os personagens tivessem tido essa possibilidade para resolverem seus conflitos, com certeza, teriam a oportunidade de passar por um processo que propiciaria a transformação das pessoas e da relação, desenvolvendo uma postura colaborativa, por um processo onde a comunicação pudesse “construir pontes”, por um processo de aprender a aprender que capacita e desenvolve as habilidades mais efetivas para manejar futuros conflitos, por meio de um processo que privilegia a relação e a escuta, bem como por um processo criativo e flexível, onde se possa pensar no hoje, visando o amanhã.
         No filme, a cena que me impactou foi a que Bárbara Rose diz ao marido (quando esse volta para casa sozinho e desolado) que ela havia gostado de pensar que ele pudesse ter morrido. Pensei nessa cena como algo trágico e ao mesmo tempo sádico. Causou em mim profunda tristeza e perplexidade: imagine conviver com uma pessoa por dezoito anos, construir um lar e depois um dos cônjuges sentir certo prazer com a provável morte do parceiro, algo cruel! Desolador! Desumano!
         As reflexões necessárias para essa situação são fundamentais ao mediador para processar e estabelecer uma relação de imparcialidade frente ao que gerou o conflito e consequentemente tais sentimentos, para que possa dar encaminhamento ao processo de mediação. Creio que algumas perguntas seriam fundamentais:
1.   O que levou a esposa a sentir-se bem com a notícia da provável morte do marido? E ainda falar isso para ele?
2.   O que gerou no marido saber que sua mulher sentira-se bem com a notícia de sua provável morte?
3.   Qual o significado da palavra “morte” para ambos nesse contexto?
Penso que essas perguntas poderiam ser um ponto de partida para que ambos pudessem rever a história de suas vidas e o rumo que foi tomando. Uma forma de possibilitar ao casal perguntas que provocassem reflexão sobre a relação que foram construindo ao longo dos anos.
     O mediador é o guardião do processo, contudo pode se emocionar com alguma situação e/ou fala dos mediados. Nesse sentido, faz-se viável tornar a emoção favorável, como um recurso ao trabalho do mediador e colocar a emoção em palavras.
     Assim, o mediador precisa encontrar o foco da relação, saber enxergar e compreender o que é dele (do mediador) e o que é do outro (do mediado); pois enquanto mediadores, precisamos cuidar da relação de todos os envolvidos no conflito, fazer reflexões necessárias para processar a situação de forma a alcançar uma postura de “neutralidade que reconhece o envolvimento”, uma forma de acolher a dor do humano.
     Essas interpretações foram um exercício para que me deparasse com questões tão fundamentais, frente às relações humanas. Enquanto mediadores, podemos cooperar com a sociedade, para que os conflitos sejam amenizados e a dor diminuída, compreendemos, portanto, o diálogo como caminho.

Referências Bibliográficas

YASBEK, Vânia C. Psicóloga e Mediadora de Conflitos pelo Instituto Familiae, 2006.
SLUZKI, Carlos E. A Rede Social na Prática Sistêmica – alternativas Terapêuticas.São Paulo: Casa do Psicológo, 1997.
SUARES, Marinés. Mediación: conducción de disputas, comunicación y técnicas. Buenos Aires. Paidós Mediación, 1996.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Texto para reflexão: Educadores, Pais e Filhos


A Dor do Segredo

O segredo queima a alma,
 e na sua explosão os ferimentos deixa.

Angelini, Rossana, 2011


        Navegamos já há uma década, no século XXI – uma nova proposta em relação à vida se constrói: buscamos a tolerância, a compreensão, o diálogo, a verdade, a inclusão e uma ética pautada no desenvolvimento da consciência, da espiritualidade. Parece-nos que, na atual sociedade, nada mais fica “embaixo do tapete”. Em algum momento, a verdade vem à tona, o segredo brota, e as feridas que deixa são difíceis de cicatrizar.
        Ocultar a verdade, mentir, esconder, segredar é um movimento que está na conduta humana e se aprende por meio das mais “ingênuas” atitudes, como: aquela pessoa “indesejada?” que liga, e você pede ao filho para dizer que não está ou algo assim. Ingênua cena, não?! À primeira vista, sim. Entretanto, é dessa forma que vai se estruturando um tipo de modalidade de aprendizagem, um tipo de comportamento, na criança. De acordo com DOLTO (1999), psicanalista francesa, tudo é linguagem: “Para uma criança, tudo é linguagem significativa, tudo o que se passa à sua volta e que ela observa. Ela reflete sobre as coisas”.
        Os pais sãos os ensinantes de seus filhos, autorizados por eles, por isso ser tão importante que os pais reflitam sobre sua modalidade de aprendentes e ensinantes. Alícia Fernández, psicopedagoga argentina, aponta-nos que muitas das dificuldades de aprendizagem ocorrem por três modalidades construídas pelos pais. Temos aqueles pais que se colocam na relação com a criança como adivinho, não deixam a criança contar o que aprendeu, como aprendeu, desprezando sua experiência, tão singular. Os pais exibem um saber que “cala” o da criança. Outra modalidade é dos pais detetives, que não possibilitam o movimento da criança se colocar no lugar do ensinante. A criança fica na posição de delatora sobre o que acontece na sala de aula. Os pais desconfiam de tudo na escola e a criança permanece no lugar do delator, o que se aprende pode ser visto como delação. A terceira modalidade que se torna um perigo é o da indiferença, ocorre uma falta de interesse por aquilo que a criança faz na escola; não há interesse pelas experiências do filho, os pais não têm tempo para ouvir a criança.
        Assim, vamos construindo modalidades e aprendendo a mentir, a ocultar a verdade, a guardar um segredo e seu “peso”, desde a infância. Ocultar a verdade para não deixar o outro sofrer (suposição nossa), uma armadilha que nos coloca na posição de reféns do segredo, da mentira que vem agregada.
         Você já parou para pensar o quanto um segredo pode ser perigoso e como ele atravessa nossas relações com a família, com a escola, com a sociedade, deixando profundas marcas. Dentre os problemas de aprendizagem que buscamos resolver na clínica psicopedagógica, muitos estão permeados pelo “escondido”, por um segredo. Pode não parecer, mas esse movimento é extremamente maléfico ao sujeito da aprendizagem, gera uma modalidade, em que o aprender não pode ser mostrado, o que se torna angustiante, pois pode estruturar uma dificuldade de aprendizagem. Por exemplo, uma criança adotada, percebe que é diferente dos pais. Se os pais “esconderem” a adoção, a criança passa a carregar algo que não pode revelar. Isso pode gerar insegurança, sofrimento. Constrói um movimento de não mostrar o que sabe e isso a obriga a esconder algo essencial da sua vida.
Nessa relação com o “segredo” aparecem dois aspectos que ajudam a dificultar a sua aprendizagem: a culpa por saber e a vergonha pelo segredo. Na situação escolar, essa criança, detentora de um segredo, poderá desenvolver uma modalidade de aprendizagem em que esconde o saber, o que pode causar dor e uma sensação de fracasso, de exclusão.
        O segredo, a falta da verdade nos trai em algum momento...
        Uma pedra ao ser jogada nas profundezas de um lago, cai só. O lago a recebe em seu interior, ocultando-a, entretanto quem a joga sabe que está lá, nas profundezas. A pedra não existe mais nas mãos de quem a jogou, contudo, a pessoa sabe que está lá, submersa, latente naquele lago silencioso, gritante...
        É diferente, quando jogada ao mar, com certeza, voltará brevemente à superfície e denunciar o que ocorreu. O mar é revolto, o lago é sereno, profundo...
        Nós, seres humanos, temos momentos de lago, profundo, e momentos de mar – revolto. O mar leva e devolve transformado aquilo que vem de seu interior. Já o lago oculta, não devolve, segura, mesmo que lhe cause dor.
        Assim, somos nós perante um segredo, de acordo com os momentos que vivemos, acionamos nosso temperamento e revelamos aquilo que nos angustia, que nos reprime ou, às vezes, escondemos o que nos cala, dolorosamente, até a morte. O segredo leva-nos fatalmente ao escondido, à mentira, ao fracasso.
        Ao ocultarmos algo de alguém, o outro torna-se o denunciante  potencial daquilo que está sendo ocultado, olvidado nas profundezas de nosso labirinto psíquico. Por isso muitas vezes, precisamos esquecer de muita coisa, guardamos para dar conta de viver a vida e amenizar o sofrimento. Será?
        Somente a verdade liberta os “monstros” que alimentamos e guardamos a sete chaves, de forma dolorosa, pois estão lá, submersos... Muitas pessoas pensam que o segredo é o único caminho para se manter uma relação. Pode-se manter, sim, uma relação, mas saudável? O segredo patologiza, adoece!
        Libertar o segredo, é libertar o monstruoso medo que guardamos. É preciso ter coragem de acreditar na verdade que ilumina nossas vidas e ter confiança.
        Dessa forma, aquilo que ocultamos é criado em nossa mente, alimentado de tal forma que se torna um monstro em potencial. Podemos dizer que o segredo paira e ronda o ambiente em que vivemos, as relações que estabelecemos, como uma sombra. O segredo torna-se uma entidade que vai paulatinamente consumindo, magoando e deprimindo quem o mantém.
Com frequência, o segredo pode ser revelado de forma arrebatadora, visto que ilude e engana o outro. O autor do segredo convive com a dor de segredar e a denúncia está sempre presente ao entrar em contato com aquele de quem o segredo se faz. O outro, que deveria saber da verdade é, então, o denunciante ingênuo, potencial, daquele que esconde.
Assim, cultiva-se a dor, o segredo vai corroendo a relação e construindo um enorme muro energético negativo que causa a separação em nível inconsciente e espiritual dos envolvidos. Entra em jogo outro aspecto, tão pernicioso que se torna uma entidade perversa – a culpa.
O segredo, a verdade ocultada, o não revelado, como já vimos, guarda em seu interior a traição e, simultaneamente, a culpa. A culpa de não poder dizer a verdade, uma cilada inconsciente que nos leva à traição.
Dessa forma, surge a pergunta – Que relação (seja ela qual for) pode ser construída em torno de um segredo?
Viver com um segredo, é viver na penumbra, na obscuridade, numa cadeia psíquica, em que a única possibilidade de se libertar é a verdade sempre, seja qual for.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Texto para reflexão: Aprendendo com a Inclusão - um enfoque holístico

Aprendendo com a Inclusão – um enfoque holístico



         Há algum tempo, ouvi um pai dizer que não seria interessante para seu filho se houvesse na sua sala de aula uma criança com problemas (alguma síndrome). Fiquei sem ação. A contra-argumentação tinha de ser feita, mas com muita cautela. Perguntei “Por quê?” A resposta trouxe a evidência de um pensamento egoísta em que todos no mundo devem ser iguais, sem diferenças, uma insinuação de que a escola, então, deve atender os iguais para ser eficiente. O mito do ideal estava construído. O grande abismo entre nós, naquele momento, era por conta de uma visão de mundo, de concepção de sociedade, de educação, de homem, de paradigma.
         O pai dizia que uma criança com problemas, atrapalharia o rendimento (aprendizado) da classe. A professora teria que parar o conteúdo para atender as solicitações, às vezes, específicas da criança em questão. A classe perderia o ritmo e muitos teriam dificuldades de aprender. E o pai continuava... Imagine como tudo isso comprometeria os estudos das crianças, e o vestibular depois. Com certeza, traria prejuízos futuros a todos.
         Comecei a questionar “De que educação esse pai falava? De que contexto? E se ele trocasse de lugar com o pai da outra criança? Qual seria sua sensação? Sentiria-se excluído da comunidade humana?”
         Pensando nessa situação, nasceu a reflexão abaixo, mais aprofundada, do que pude responder naquela noite, ao pai, sem cair na mesma armadilha do preconceito.

Vivemos num mesmo tempo, com diferentes olhares sobre o mundo, diferentes paradigmas.

         O propósito dessa reflexão é divulgar as novas bases sobre a  Educação seja com quem for, onde for. Falamos do paradigma da Pós-Modernidade. Partimos do princípio de que somente por meio da educação, do conhecimento, o homem poderá desenvolver-se como ser humanizador, um processo, ainda, em construção. Nesse sentido, vemos o ser humano como um ser de possibilidades, cujo objetivo é aprender a vida em todos seus aspectos.
Para a compreensão dessa proposta, precisamos pensar primeiramente na questão do modelo de sociedade sob o qual vivemos: o paradigma - uma percepção geral da vida; um consenso sobre a maneira de entender, de perceber, de agir; uma visão de mundo, a que nos submetemos, de forma consciente ou não, para organizarmos nossas vidas.
         Hoje, estamos vivendo, um momento de transição de idéias, de valores e de relações. Para entendermos melhor esse problema, vejamos o antigo modelo que ainda está instalado em nosso modus vivendi – o paradigma da Modernidade, e o novo que estamos buscando viver urgentemente – o da Pós-Modernidade.
         O paradigma da Modernidade, conhecido como mecanicista é interpretado segundo as idéias de René Descartes (séc. XVII). Para ele, o mundo natural devia ser visto como uma máquina. Descartes desenvolveu o Método Cartesiano, partindo das idéias de Galileu. Ambos acreditavam que a chave para a compreensão do universo era a estrutura matemática; daí apresentarem uma visão mecanicista de mundo. Dessa maneira, a certeza cartesiana é matemática, ou seja, se em uma máquina algo vai mal, é preciso descobrir o defeito da parte danificada e trocá-la para que volte a funcionar.
         Nesse sentido, o olhar é local, é para as partes e não para o todo. Vamos transpor essa idéia para a Educação. O ensino tradicional propõe uma aprendizagem compartimentada e, em alguns momentos, fragmentada. Dessa forma, o aluno deixa de ter a visão do todo e não há uma preocupação com a interdisciplinaridade, para se compreender os conteúdos das disciplinas, é preciso separá-los. Essa forma de educação torna-se descontextualizada. Para agravar, muitas de nossas escolas têm como meta o Vestibular, a competição e não o sentido, o significado daquilo que se deveria aprender para a própria vida. Nos tempos atuais, a velocidade urge, tudo precisa ser rápido e eficiente. Tempo é dinheiro!
         Esse contexto, muitas vezes, gera a dificuldade de aprendizagem. A criança que apresenta algum problema é olhada como única responsável por isso, compete a ela resolver, caso contrário vira um aluno rotulado, aprisionado, sem capacidade de sair do lugar que lhe ditaram: o lugar do não saber. Essa visão, novamente é local e individual, perde-se de vista o sujeito como um todo, reduzindo-o a um aluno com dificuldades. Perde-se de vista que somos seres sistêmicos, ligados a uma rede de relações. Se aprendizagem é relação, como fica, então, esse movimento, em que a corda arrebenta quase sempre do lado do aprendente?
         Na medicina, por exemplo, a relação médico-paciente, repete a relação de poder e saber do professor-aluno. Basta olharmos para as “n” especialidades médicas que existem. Muitos especialistas perderam a visão do todo, a possibilidade de ver o homem de forma holística. Dessa forma, o atendimento torna-se prático e pragmático, como se o ser humano fosse uma máquina. A visão de mundo que tem imperado mostra-se fragmentada, compartimentada, sem conexão com o todo, privilegia a competição, a luta, a individualidade, bem como a busca da perfeição, da eficiência, do poder e do sucesso. Sob esse modelo que opera com as leis da matemática, constrói-se uma visão positivista da realidade, que permite a objetividade e o rigor nas ciências, uma visão de mundo, portanto, mecanicista. Esse formato tem nos levado a um mundo de crises individual, social, política, ambiental, uma crise global que ameaça a todos e ao planeta.
         Atualmente, estamos lutando por uma nova compreensão de mundo mais adequada às novas descobertas científicas e à vida que tem se desenvolvido: o paradigma da Pós-Modernidade. Temos de divulgá-lo, para acioná-lo no dia a dia de nossas vidas, seja na escola, na profissão que exercemos, no médico em que nos consultamos, em todas as relações que estabelecemos. Somos seres holísticos. Somos seres de aprendizagem. Somos seres sistêmicos.
         Em alguns campos da ciência contemporânea, representada por Morin, na epistemologia; na psicologia, Jung; Luhman, na sociologia; Prigogine, na química; na biologia, Maturana; Einstein, na física; Goswami, na física quântica, e outros tão importantes à construção e à compreensão de nossa vida, temos observado novas pesquisas e uma adesão ao novo modelo, pois as descobertas atuais têm conexão, estão convergindo para a ampliação do nosso conhecimento como seres humanos irmanados, como uma só pessoa, na comunidade humana. Como nos aponta Marcelo Gleiser. “já vivemos num mundo quântico”, queiramos ou não.
A partir dessa nova perspectiva, até mesmo em nosso vocabulário, já percebemos as diferenças. Se antes falávamos em fragmentação, individualidade, em conhecimento das partes, em especialidades e especificidades, em objetividade, em rigor científico, agora falamos em rede, conexão, interação, interdisciplinaridade multiplicidade, multidisciplinaridade, conhecimento transversal, co-responsabilidade,co-construção, possibilidades, autoria, autonomia, criatividade, diversidade, sistemas. Um vocabulário voltado para as relações que estabelecemos com a vida de forma coletiva, cooperativa, complementar, ética.
Parece haver uma convergência ao que foi separado: ciência e religião. Pensamos que seria melhor falar em ciência e espiritualidade, pois procuramos incluir a expansão da consciência nos processos de aprendizagem.
         Assim, estivemos e estamos agindo frente à nossa casa, o nosso planeta – Terra – que sob o antigo paradigma, é visto como um planeta apenas, sem a menor ligação com nossas vidas. Estamos no planeta, quando deveríamos pensar que somos o planeta e que por isso requer cuidados. Temos de ser pela vida. Seja ela como for, de quem for, onde for, de forma ética. Somos seres de relações e de aprendizagem: a vida é um processo de aprendizagem o tempo todo.
         Essa nova visão de mundo, a da Pós-modernidade, nomeada por paradigma sistêmico ou holístico rejeita a velha visão de mundo. Parte, portanto, de novos pressupostos como interação e relações dentro de uma visão sistêmica, cuja proposta é a inter-relação do homem com a natureza. 
         Dessa forma, o que move nossos pensamentos, nossas ações, o que nos faz tomar decisões é o paradigma que nos rege e que nos faz caminhar. Esse movimento é o que determina nosso olhar perante o mundo.
Atualmente, concebemos o homem como um ser de relações, por isso não vive sem o outro. Essa é a lei do humano: viver relações, cujo objetivo maior é a aprendizagem. Precisamos do outro para nos compreendermos e para aprendermos a vida. Somos gerados por dois, somos gerados dentro de outro, estamos presos a ele por um cordão, onde circula a vida, o nosso alimento. Nossas células contêm toda a memória de nossos antepassados, têm memória física, genética e emocional de todos que foram e serão umbilicalmente ligados a nós, de geração a geração. Então, como podemos excluir pessoas diferentes de nós?
         Por isso, quando falamos em Educação, faz-se necessário pensar em algumas questões fundamentais, frente ao Paradigma da Pós-Modernidade:
1-   O que é educar?
2-   Educar para quê?
3-   O que penso sobre educação?
4-   O que penso sobre o aluno?
5-   O que penso sobre o Homem?
6-   O que penso sobre ser professor?
7-   O que penso sobre a relação de aprendizagem?
8-   O que penso sobre o mundo?
9-   O que penso sobre meu país?
10- Quem sou eu frente a esses questionamentos? Em que paradigma estou inserido?

Essas são questões que nos propõem um exercício de reflexão que nos levam a uma concepção de mundo que nos compromete com a vida que temos em nossas mãos enquanto pais, professores, educadores. Talvez o único sentido de estarmos aqui nesse mundo: aprender, para nos aperfeiçoarmos constantemente enquanto seres humanizadores, sejam quais forem as relações estabelecidas, a fim de iluminarmos os caminhos daqueles que por nós passam.   
         Iniciamos um novo século, uma nova era, um momento em que o homem busca seu auto-conhecimento, bem como a ligação do ser com o cosmo, uma busca pela espiritualidade, por uma nova ética. Começamos a pensar o planeta como nossa casa, casa do humano, da vida humana. Toda e qualquer atitude inadequada conjunta e/ou isolada frente à vida e ao planeta pode nos colocar em risco; pois somos parte intrínseca da natureza e qualquer dano a ela recairá sobre nossas vidas.
         Vivemos em rede, onde a vida de um depende da do outro, em todos seus aspectos. O homem está buscando a auto-consciência dentro do universo em que vive.
Se pensarmos que somos seres espirituais em uma experiência corpórea, teremos uma essencial mudança de paradigma. Poderemos alcançar uma nova ética nas relações que estabelecemos, essencialmente na Educação. Estamos na corrente das mudanças, das transformações, para que possamos evoluir enquanto seres humanos e vivermos a comunidade do humano, do destino e, para isso, precisamos olhar para a essência que habita cada um, para as diferenças, para a tolerância, para a diversidade, para a flexibilidade, para as possibilidades.
         Urge construir a nossa dignidade social, cultural, histórica. O primeiro espaço a ser transformado é o da escola e a família precisa ser parceira nesse destino. Assim, cabe-nos pensar em algumas questões fundamentais: Qual o papel da escola hoje no Brasil, no mundo? Qual o papel do professor na escola, na sociedade? Quem é o aluno no processo de aprendizagem? Quais relações o professor e aluno estabelecem frente ao processo de aprendizagem? Quanto aos conteúdos estudados, qual seu fim? Como o aluno aprende? Como o professor pode ensinar? E a inclusão que processo é esse? Qual sua dimensão?
         Essas questões podem ser o início de uma reflexão mais aprofundada sobre a dinâmica das relações e do processo de aprendizagem de todo e qualquer ser humano com alguma síndrome ou não. Cremos que o homem deve urgentemente se rever, antes que o sofrimento do planeta, da natureza, de nossas relações, plante a dor como nosso único fim. Precisamos assumir as diferenças e compreender que tudo é transitório, efêmero, perto do que deve ser a dignidade humana.
         Então, voltando ao início de nosso texto, disse àquele pai que somos todos iguais, mas com nossas diferenças, sim, por isso, todos precisam ser respeitados e acolhidos igualmente, em que situação for. Descoisifiquemos nosso tempo, as pessoas, para humanizá-lo e torná-lo favorável à vida, como for.



As palavras, aos poucos, foram escapando e uma lágrima rolou...
Nesse momento, caro leitor, fica minha eterna gratidão por acolher meu trabalho, meus questionamentos e a seriedade com que o desempenho junto a todos meus alunos - tão capazes! Sempre acreditei no potencial humano e nas suas possibilidades, como Celma Cenamo¹ me disse uma vez, mais ou menos assim: “Você olha para as possibilidades do sujeito e não para as sua dificuldades”. Então, disse a ela que estava feliz por ter encontrado um lugar onde as pessoas pensavam, compreendiam a vida, seus movimentos de aprendizagem de uma maneira mais ampla e humanizadora. Disse-lhe, ainda, que a construção desse olhar competia ao movimento de aprendizagem de minha mãe sobre o mundo: uma pessoa simples,mas de grande sabedoria, sabia arregaçar as mangas da vida e ir ao encalço daquilo que considerava justo e correto para nós. Cresci assim, olhando para as possibilidades de tudo, para o que é verdadeiro, abrindo caminhos, sempre... Por isso estou aqui.
__________
¹Celma Cenamo foi pedagoga e psicopedagoga, fundadora da escola Trilha – Unidade de Integração

Artigo - A Educação Especial e o Curso Preparatório para o Supletivo do Ensino Fundamental

A EDUCAÇÃO ESPECIAL E O CURSO PREPARATÓRIO PARA O SUPLETIVO DO ENSINO FUNDAMENTAL

         Considero importante divulgar esse trabalho de inclusão tão fundamental à nossa sociedade. O objetivo é ampliar nosso olhar sobre o humano, seja ele quem for. Buscamos redimensionar a capacidade humana frente à aprendizagem, quando prestamos atenção, quando desejamos, quando acreditamos no potencial do outro, quando queremos um mundo melhor... Tudo pode mudar!
         Somos todos iguais, mas com nossas diferenças. O mais criativo, o mais original, é poder aprender com elas.

Trabalho desenvolvido na escola TRILHA –
Unidade de Integração do Desenvolvimento

RESUMO

Esse trabalho tem como proposta apresentar o Curso Preparatório para o Supletivo do Ensino Fundamental implantado na escola Trilha – Unidade de Integração do Desenvolvimento - que atende jovens especiais. Ainda tem por objetivo expor a capacidade cognitiva do aluno especial frente aos desafios do curso, como o de prestar as provas no Instituto Universal Brasileiro. Dentro de um olhar psicopedagógico e a eleição de uma abordagem na perspectiva histórico-cultural da educação, apontaremos a importância da mediação e da zona de desenvolvimento proximal nas relações de aprendizagem estabelecidas com esses jovens.

Palavras-chave: Educação Especial; Supletivo; Psicopedagogia; Mediação.

ABSTRACT
 
This work has as proposal to present the Preparatory Course for Suppletive of the Fundamental Teaching implanted at the school “TRILHA” - Unit of Integration of the Development - that assists young special. It still has for objective to expose the cognitive capacity of the student special front to the challenges of the course, as the one of rendering the tests at the Instituto Universal Brasileiro. Inside of a psychopedagogical glance and the election of an approach in the historical-cultural perspective of the education, we will point the importance of the mediation and of the area of proximal development in the established learning relationships with those young ones. 
 
Key Words: Special education; Suppletive; Psychopedagogy; Mediation.


Todo inventor, até mesmo um gênio, sempre é consequência
de seu tempo e ambiente. Sua criatividade deriva das necessidades
que foram criadas antes dele e baseia-se nas possibilidades
que, uma vez mais, existem fora dele.
É por isso que observamos uma continuidade rigorosa no
desenvolvimento histórico da tecnologia e da ciência.
Nenhuma invenção ou descoberta científica aparece
 antes de serem criadas as condições materiais e
psicológicas necessárias para o seu surgimento.
A criatividade é um processo historicamente
contínuo em que cada forma seguinte é
determinada pelas precedentes.

Lev Vygotsky

Para Celma Cenamo

          A proposta desse trabalho é apresentar a capacidade cognitiva que os alunos que apresentam um déficit mental, seja ele de que natureza for, têm para realizar o Curso Preparatório para o Supletivo do Primeiro Grau. Os conteúdos são estudados na escola TRILHA – Unidade de Integração do Desenvolvimento – que os prepara para a realização das provas no Instituto Universal Brasileiro – Centro de Ensino Supletivo à Distância com funções de Suplência II (1º Grau) e Suplência com nível de 2º Grau – órgão oficial do Conselho Nacional e Estadual de Educação.
O curso preparatório para o Supletivo foi implantado na escola TRILHA – Unidade da Integração do Desenvolvimento pela diretora Celma Cenamo que endossa todo nosso trabalho pedagógico e psicopedagógico. A princípio soou como uma idéia desafiadora, entretanto, com grande possibilidade dos alunos obterem êxito.
          Após dois anos de atuação como psicopedagoga e professora nesse projeto, senti a necessidade de divulgar o importante trabalho que estamos construindo com nossos alunos, um caminho que envolve empenho e, acima de tudo, afeto na relação que estabelecemos com nossos jovens, pessoas capazes de aprender, que têm discernimento e sabem da importância dos estudos frente à sociedade.
Dessa forma, faz-se necessária a abertura de novos espaços de aprendizagem, a fim de que pessoas que, apresentem algum tipo de comprometimento, possam dar seqüência aos seus estudos. Os alunos enfrentam suas dificuldades e se empenham na realização das atividades, cujo objetivo culmina com a prova final (média cinco) de cada uma das disciplinas que compõem o Ensino Fundamental: Português; História; Geografia; Ciências; Artes; Matemática e Espanhol. Esses alunos foram matriculados oficialmente no Instituto Universal Brasileiro e, portanto, receberam todo material apostilado, iniciando pela quinta série do ensino fundamental. A partir desse material, desenvolvemos o curso na escola, cujo objetivo é prepará-los para a compreensão e assimilação dos conteúdos a serem estudados. Atualmente, os alunos estão cursando as sextas e sétimas séries do ensino fundamental no curso preparatório e, assim, vencendo satisfatoriamente cada etapa.
          Houve uma mudança na escola, a mudança do lugar que ocupavam e que agora ocupam. Quando o aluno fala em mudar de série, ele está se referindo à mudança de espaço e ao lugar que pode ocupar socialmente, movimento que trouxe, entre tantas mudanças, a possibilidade de crescer e avançar cognitivamente, socialmente.

                        A idéia de que os processos mentais dependem das formas ativas de vida num ambiente apropriado tornou-se um princípio básico da psicologia materialista. Essa psicologia também admite que as ações humanas mudam o ambiente de modo que a vida mental humana é um produto das atividades continuamente renovadas que se manifestam na prática social. (Vigotsky, 1992, p.23)

          Para Vygotsky, todas as atividades cognitivas humanas fundamentais tomam forma na matriz da história social. Por isso, faz-se preciso transmitir os valores sociais para potencializar as capacidades intelectuais e o desenvolvimento da inteligência.
          O curso Preparatório para o Supletivo do Ensino Fundamental vem com uma missão – suprir os conhecimentos de pessoas que não tiveram a possibilidade de dar seqüência a seus estudos dentro de um tempo convencional, por motivo de dificuldade de aprendizagem.
          O curso Preparatório para o Supletivo na vida desses jovens trouxe a possibilidade de mostrarem sua capacidade cognitiva, emocional, expressiva, afetiva. A maioria das funções cognitivas envolve a interação simultânea de mapas provenientes de muitas e diferentes partes do cérebro. O cérebro reúne percepções pela interação de conceitos inteiros, de imagens inteiras; é um processador analógico que funciona por analogia e metáfora. Relaciona conceitos completos uns com os outros e procura estabelecer as semelhanças, diferenças ou tipos de ligações existentes entre eles, ou seja, trabalha de forma interativa.
         Vygotsky escolheu a mediação enquanto propriedade característica da consciência humana, enfatizando a idéia de que o desenvolvimento mental deve ser encarado como processo histórico em que o ambiente social e não-social do sujeito levam-no ao desenvolvimento de processos de mediação de várias funções mentais superiores.

                        As consequências dessas novas ideias para o tratamento dado por Vygotsky a questões defectológicas mais específicas foram, na verdade, bastante modestas. Ele agora afirmava que o potencial de desenvolvimento para crianças defeituosas deveria ser buscado na área de funções psicológicas superiores (1931f, pp. 4-6), argumentando que as funções inferiores eram menos educáveis, porque dependiam mais diretamente de fatores orgânicos. Como as funções superiores desenvolvem-se na ação mútua social por meio do uso de meios culturais, devemos concentrar nossos esforços em ajustar esses meios às diferentes necessidades das crianças defeituosas. (....) Referindo-se a Eliasberg, Vigotsky argumentou também que as escolas especiais não deveriam  restringir seus esforços ao ensino de habilidades simples com base no auxílio de recursos visuais, mas deveriam também tentar ensinar às crianças um princípio de pensamento abstrato (1929m. p. 33; 1929y. p. 149). A compensação de um defeito orgânico deveria ser encontrada na aprendizagem de conceitos adquiridos no coletivo. Claro que essas visões, em grande medida, apenas reiteravam o ponto de vista anterior de Vygotsky de que os defeitos tinham que ser superados por meio da palavra. (Veer & Valsiner, 1996, p.88)

          Tudo pode alterar, portanto, o desenvolvimento cognitivo-afetivo, o sorriso dos pais, alguns exercícios antes de começar o dia de trabalho, jogos, uma reunião entre amigos. Tudo afeta o desenvolvimento, e esse é um processo que dura a vida inteira. Por que falamos em cognição e afeto? Porque o processo de aprender pressupõe uma mobilização cognitiva desencadeada por um interesse, por uma necessidade de saber. O que o torna possível é o desequilíbrio cognitivo que só se reequilibra, quando se conquista o objetivo que é o de aprender. Cognição e afeto estão inter-relacionadas e exercem influência no desenrolar da história de aprendizagem do sujeito.
         Nesse sentido, as atividades cognitivas superiores são de natureza sócio-histórica e todos os processos cognitivos mudam ao longo do desenvolvimento histórico. Todos os fatores ambientais são decisivos para que haja o desenvolvimento sócio-histórico da consciência, o que amplia a capacidade de captar informação e reflexão sobre a realidade.
         As relações de aprendizagem podem ser a mais poderosa força a dirigir o desenvolvimento de nossos cérebros e, portanto, de nossas vidas. O meio ambiente, as relações que estabelecemos e os genes estão em contínua interação para modificarem o cérebro. Vygotsky apresentava em seus escritos que grupos de níveis mistos seriam como uma condição para promover o desenvolvimento cognitivo. Ainda concluiu que deficientes mentais encontram sua ‘fonte viva de desenvolvimento’ em ações recíprocas sociais com outras pessoas que estejam em um nível superior a eles próprios, idéia que já antecipava o conceito de zona de desenvolvimento proximal.
          Não estamos aprisionados pelos nossos genes ou pelo meio ambiente. Aspectos sociais como: alienação, pobreza, drogas, desequilíbrios hormonais e depressão não impõem o fracasso. Riqueza, aceitação, boa alimentação e exercícios físicos também não garantem o sucesso, como aponta RATEY (2001). As relações de aprendizagem podem ser a mais poderosa força a dirigir o desenvolvimento de nossos cérebros e, portanto, nossas vidas. O cérebro é plástico e está sempre ávido por aprender. Experiências, pensamentos, ações e emoções mudam-lhe a estrutura. Uma vez entendido como nosso cérebro se desenvolve, podemos capacitá-lo para a saúde, vibração e longevidade, por meio das relações sociais que estabelecemos na vida.
          Hoje, já temos provas científicas de que o desenvolvimento é um processo contínuo e interminável. Os minúsculos neurônios e suas interconexões, axônios e dentritos, podem ser modificados e fortalecidos, talvez, até reconstruídos.

                        Desde o instante em que começa a ser construído, o cérebro é um cérebro social, com os neurônios estabelecendo conexões com seus vizinhos ou morrendo por falta de contato. (....) o cérebro é um órgão social: onde não há conexão, não há vida. (Ratey, 2001, p. 33)

          Por meio dessas colocações, estamos tecendo as conexões entre nossos alunos, sua capacidade cognitiva-afetiva, o cérebro e seu desenvolvimento, o curso Preparatório para o Supletivo e a sociedade em que vivem esses jovens. Dessa forma, temos observado, na prática, o quanto nossos alunos ampliaram seus conhecimentos frente à vida e o quanto estão felizes ao enfrentar os desafios que o estudo de diferentes ciências lhes impõe. Quanto mais aprendemos atividades complexas, mais sinapses, conexões desenvolvemos, e ler, estudar são atividades que proporcionam a ampliação da estrutura cognitiva.


(....) Vygotsky raciocinou que a educação social, baseada na compensação social dos problemas físicos, era a única maneira de proporcionar uma vida satisfatória para crianças “defeituosas”. Em sua opinião, as escolas especiais da época faziam pouco em termos dessa educação social. Influenciadas por idéias religiosas e filantrópicas, remanescentes de uma mentalidade burguesa originada no mundo ocidental, enfatizavam a situação infeliz das crianças e a necessidade de que elas carregassem sua cruz com resignação. Em contraste, Vygotsky defendia uma escola que se abstivesse de isolar essas crianças e, em vez disso, integrasse-as tanto quanto possível na sociedade. As crianças deveriam receber a oportunidade de viver junto com pessoas normais (1924i, p.74).
Enfatizando que essas crianças defeituosas eram 95 por cento saudáveis e tinham potencial para um desenvolvimento normal, ele reivindicava ardorosamente que os muros das escolas especiais fossem derrubados e que essas crianças participassem do Komsomol¹, onde poderiam ser educadas para tomar parte nas atividades de trabalho normais. Ao participarem do movimento pioneiro, as crianças surdas-mudas e cegas viveriam e se sentiriam como o resto do país. Seus pulsos “bateriam em uníssono com o pulso das enormes massas do povo” (1924i, pp.75-6; 1925b, pp. 112-113. (Leer & Valsiner, 1996, p. 75)

O jovem especial e a Zona de desenvolvimento Proximal: Interação entre aprendizado e desenvolvimento

          O Supletivo trouxe um novo sentido à vida de nossos jovens – tão capazes! (antes considerados incapazes para o Ensino Fundamental) e, agregado a isso, um sentimento de ser e estar no mundo, compartilhando saberes. Esse movimento possibilitou-lhes a mudança de lugar, o virar das páginas, novos começos a cada etapa vencida, uma nova série, um novo desafio, o alargamento de uma nova perspectiva. Dessa forma, a escola passou a desempenhar um papel fundamental na vida desses jovens, no desenvolvimento de sua personalidade, propiciando a participação em grupos diferentes e ainda possibilitando que assumissem papéis diferenciados. Pensamos que quanto maior a diversidade de participação em diferentes grupos e situações poderão melhor desenvolver a ampliação de suas relações sociais e, dessa maneira, desenvolverem-se integralmente como pessoa, por meio de uma compreensão global da realidade em que estão inseridos e uma maior compreensão de si próprios.

_____________________

1. Komsomol – organização sócio-política criada em 1918, cujo propósito era disseminar as idéias do comunismo e envolver a juventude, o trabalhador e o camponês na construção ativa da Rússia Soviética.

Propomos uma educação desafiadora para esses jovens, no sentido de ir além de seu desenvolvimento, contudo, mediando todo seu processo de aprendizagem e considerando esse sujeito ativo-interativo no seu processo de construção de conhecimento. O professor aqui atua como mediador na dinâmica das interações interpessoais, bem como na interação do aluno frente ao objeto de conhecimento.
         O jovem com necessidades especiais tem um imaginário intelectual, afetivo e social sobre a vida. Muitas vezes, não encontram caminhos na sociedade para direcionar suas vontades e o curso Preparatório para o Supletivo abriu-lhes uma nova porta, onde podem ser e estar com outros jovens.
O trabalho pedagógico e psicopedagógico desenvolvidos no curso preparatório caminha por dois enfoques, segundo Vygotsky, um que ele denomina de nível de desenvolvimento real ou efetivo, e outro de nível de desenvolvimento potencial relacionado à capacidade do que será construído pelo aluno. O nível de desenvolvimento real refere-se àquilo que o aluno já tem desenvolvido, como tarefas e atividades que já conhece e pode desenvolver sozinho.
         Estamos, portanto, atuando no campo do desenvolvimento potencial, ou seja, os alunos têm capacidade de fazer algo, mas ainda com o auxílio de outra pessoa. O papel do professor, portanto, é o de propor situações e atividades que sejam desafiadoras e que instiguem a atividade intelectual.

                        Nesse caso, a criança realiza tarefas e soluciona problemas através do diálogo, da colaboração, da imitação, da experiência compartilhada e das pistas que lhe são fornecidas. (....) Esse nível é para Vygotsky bem mais indicativo de seu desenvolvimento mental daquilo que ela consegue fazer sozinha. A distância entre aquilo que ela é capaz de fazer de forma autônoma (nível de desenvolvimento real) e aquilo que ela realiza em colaboração com os outros elementos de seu grupo social (nível de desenvolvimento potencial) caracteriza aquilo que Vygotsky chamou de “zona de desenvolvimento proximal”. (Rego,1998, p.73)

          Vemos a construção do conhecimento de nosso aluno de forma prospectiva. Funções que estão em processo de amadurecimento e que permitem futuras conquistas tanto no campo pedagógico como social. Nesse sentido, o aprendizado é responsável por criar a Zona de Desenvolvimento Proximal, por meio da interação com outras pessoas, a fim da expansão de suas competências. Esse é o caminho pelo qual os alunos elaboram pessoalmente os conhecimentos, a competência (aquilo que é capaz de fazer, pensar, compreender), a qualidade do conhecimento que possui e as possibilidades pessoais de continuar aprendendo.

O movimento para a aprendizagem

         Pensamos num processo de aprendizagem que só tem significado para aquele que aprende, quando são acionados pelo pedagógico os recursos estéticos, éticos e lúdicos, elementos que têm possibilitado o gosto e a vontade por aprender e significar o que aprendem. Consideramos nosso jovem como um ser ativo-interativo na construção do seu conhecimento: jovens que passaram a construir um saber sobre si, sobre suas vontades, um saber sobre o mundo à sua volta. Os recursos que elegemos para ensinar e os que o aluno elege para aprender atuam de forma positiva na construção do processo da aprendizagem e favorecem o processo de assimilação, a criatividade e o desenvolvimento cognitivo, o que permite a adaptação do sujeito ao meio e à sua realidade.      
                             Aprender é um processo delicado que passa fundamentalmente pelos sentidos e um dos recursos que alguns alunos elegeram foi o auditivo, por apresentarem problemas orgânicos referentes à visão. A partir de uma pesquisa da Secondy – Vaceium Oil Co (E.U.A.), demonstrou-se que o aprendizado por meio da audição e de 11% e sua retenção é de 70% do que se ouve e logo se discute. Isso pode nos dizer que pessoas com comprometimento visual, total ou parcial, podem desenvolver outras habilidades, seus outros sentidos para a aprendizagem, como o de desenvolver a audição enquanto recurso. Os meios servem de estímulos que podem provocar as respostas a situações problemas.
                             Cabe ao professor, nesse sentido, ter um olhar não só para o “Quem” aprende, mas, acima de tudo, para o “Como” o aluno aprende e qual melhor recurso eleger para que seu aprendizado seja efetuado; o melhor recurso, portanto, será aquele que melhor permitir a consecução dos objetivos propostos.
                             Os alunos que não têm condições de ler por algum problema orgânico, como dificuldade na visão e, por esse motivo não podem focar e ler o texto, desenvolveram um recurso como o de estudar com os pais e/ou pessoas que os acompanham. Esse é um recurso auditivo e o aprendizado se dá por meio da oralidade, ou seja, os alunos compreendem, interpretam os assuntos desenvolvendo uma aprendizagem pela audição – a janela que encontraram para esse processo, aspecto que revela uma autonomia parcial frente a seus estudos.
                             Ao prestarem as provas no Instituto Universal Brasileiro, leva-se em conta o problema orgânico de alguns alunos e, dessa forma, a prova é lida para esses jovens responderem oralmente a alternativa que consideram correta. Esse movimento é fundamental e atende às necessidades especiais dos jovens. Cremos que essa medida deveria ser ampliada para todos que têm o desejo de aprender, mesmo que seja por meio de outros recursos, visto que estudar é um direito de todos e para isso se faz compreender a diversidade na educação, onde todos somos iguais, mas com nossas diferenças.
                             Nesse sentido, o professor deve observar as necessidades de seu aluno, como aprende; seus desejos e vontades; seu envolvimento emocional e os aspectos socioculturais que permeiam sua vida. Tal movimento possibilita ao professor perceber as necessidades do aluno e reconhecer a diversidade e, portanto, usar de recursos que sejam significativos para ele, cuja finalidade é levá-lo a construir competências para viver em sociedade com ética e cidadania. Procuramos trabalhar no terreno da autoconfiança, da dignidade humana.
                             Hoje vivemos a diversidade em todos os aspectos: social; histórico; cultural; emocional; físico; racial e religioso – precisamos aprender a lidar com as diferenças sejam elas quais forem, onde forem; aprender a tolerância; a flexibilidade, somente assim, poderemos viver em uma comunidade humana, em que a vida de um depende da vida do outro, estamos em rede.
                  
A fala dos alunos – um caminho a compartilhar

         Trazemos aqui alguns dos depoimentos dos jovens sobre o Curso Preparatório para o Supletivo do Ensino Fundamental:

Eu gosto muito de fazer o supletivo, só que exige muito esforço. Quero ir para a faculdade, lá vou aprender mais coisas.” (22 anos)
“Estudo Espanhol e outras matérias. Estou aqui para tirar meu diploma.” (21 anos)
“Sinto-me bem aqui, graças a Deus. Aproveito o que o professor me ensina e o que “pego”, tudo bem...No futuro, lá na frente... estou pensando em algo, ainda não sei...” (22 anos)
“Soube que havia supletivo e minha família me colocou aqui porque quero tirar meu diploma. Depois não sei o que vou fazer.” (24 anos)
“Me formei no primário, depois me interessei pelo supletivo. Aprendo muita coisa no ensino fundamental e também a ter amigos, como fazer amizades fora daqui. Quero fazer computação, é um sonho.” ( 16 anos)
“O supletivo é uma luz. O grupo ajuda muito a aprender a ler, escrever... Mudou minha vida! O grupo mudou. Tudo mudou para melhor. Aprendo matemática, português, espanhol, história, tudo me faz bem. “ ( 20 anos)
“Em primeiro lugar, estou aqui pela minha família, porque quero ajudar minha família toda. Quero ser alguém na vida, ter meu próprio dinheiro e ser alguém na vida. Quero trabalhar no futuro. Quero estudar até a oitava série e vou lutar até o fim pelo que quero, com garra e força, pensando positivo. Nada é difícil, basta a gente querer e ter fé para conseguir as coisas.” (16 anos)

A fala do grupo sobre o Curso Preparatório para o Supletivo do Ensino Fundamental:

“O supletivo ensina a desenvolver o respeito, a educação, a confiança em si próprio, a força de vontade, a esperança, o preparo para as provas, segurança na prova, segurança para explorar nossas vidas, o amor que sentimos pelo outro.”

         O Curso preparatório para o Supletivo do Ensino Fundamental tem sido importante para o desenvolvimento das funções superiores de nossos jovens; pois percebem o mundo à sua volta e desejam vivenciar socialmente o que outros jovens vivenciam: estudar, ter um diploma, namorar, inserir-se na sociedade e viverem a vida como protagonistas de sua história. Nossos jovens são pessoas como outras, contudo com um comprometimento frente ao seu desenvolvimento cognitivo, o que não significa impossibilidade de aprender e de desejar aprender dentro de seu tempo e de suas possibilidades.
         Nesse sentido, não podemos deixar de abordar o olhar psicopedagógico e a mediação que estabelecemos em sala de aula. A Psicopedagogia é uma ciência interdisciplinar que lida com as relações de aprendizagem que são estabelecidas entre o aprendente e o ensinante. Como ciência, que tem por objetivo compreender o que permeia a aprendizagem, o seu foco está nas possibilidades que o sujeito apresenta e desenvolve para aprender, visto que esse processo passa pelo corpo, pelo organismo, pelo desejo, pelo inconsciente. Trabalhamos com o “Quem” apresenta dificuldades com sua aprendizagem, estabelecendo um diálogo com as diferentes ciências para a compreensão do não aprender que o sujeito carrega. Assim sendo, o papel que o professor assume em sala de aula é o de mediador na dinâmica das interações interpessoais e na interação do jovem com o objeto de conhecimento. O professor nesse projeto precisa estar atento ao grupo, buscando compreender os recursos de que dispõem, as suas possibilidades, o interesse pelos conteúdos a serem estudados, no sentido de criar estratégias que sejam significativas na construção do processo. Por meio de uma relação dialógica reflexiva, abrimos, então, espaço para uma escuta, cuja finalidade é compreender as relações que o aluno estabelece com o objeto de conhecimento e com as interações que estabelece com os outros jovens, o que propicia grandes conquistas ao desenvolvimento pessoal. 
         O Curso Preparatório para o Supletivo propicia uma possibilidade real desse jovem estar inserido socialmente, principalmente,  pelo fato de realizar as provas finais como outros jovens no Instituto Universal Brasileiro. A mudança de lugar físico-social, permite-lhes estar junto com outros jovens. Esse movimento traz implicações importantes para seu desenvolvimento psico-afetivo-sócio-cognitivo.

                        Já ficou claro que a inteligência dos deficientes mentais evolui na medida em que se atua pedagogicamente em duas frentes: a que se refere à solicitação do desenvolvimento das estruturas mentais e a que propicia uma melhoria de condições de funcionamento intelectual. Tem-se, portanto, de assegurar ao sujeito cognitivamente prejudicado uma ação concomitante de apoio e estimulação da construção de seus instrumentos intelectuais e de utilização mais ampla, adequada dos mesmos, na resolução de situações-problema. (Mantoan, 2000, p. 111,112)

Considerações finais

         O curso Preparatório para o Supletivo apresenta uma proposta social, cuja finalidade é redimensionar e/ou criar novos espaços para que jovens que tenham um comprometimento mental e/ou físico possam realizar os cursos à distância, dentro de suas possibilidades, de forma a atender todo aquele que almeja estudar, ampliar seus conhecimentos e obter um diploma oficial.
 Nesse sentido, o curso Preparatório para o Supletivo do Ensino Fundamental despertou-lhes o caminho da autoria, uma autoria tecida no dia a dia que propiciou, por meio de grandes desafios, a auto-imagem, a confiança, o empenho e, acima de tudo, um questionamento, um fazer para ser. Ampliou a sua socialização, permitindo o contato e a relação com pessoas diferentes, o que gerou uma inclusão natural, uma inclusão entre seres humanos.   
            O eixo do trabalho que realizamos em sala de aula é psicopedagógico: trabalhamos com o incomensurável ser humano, com a expressão humana e, dessa forma, olhamos para a vida que pulsa em cada um de nossos alunos. Lidamos, portanto, com a diversidade e com as possibilidades de cada um, procurando gerar um campo saudável em nossas relações de aprendizagem. Buscamos a inclusão incondicional, a inclusão de cada um em sua singularidade.
          Por esses e tantos outros motivos - invisíveis aos nossos olhos - os alunos do Curso Preparatório para o Supletivo conquistaram um brilho próprio, e o que os impulsiona é a vontade de estar na sociedade, agir sobre ela. Assim, abrimos as portas de um novo momento, um novo sentido para a vida de nossos alunos que têm muito a fazer e muito a conquistar: a autoria da vida!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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